Reflexões sobre a água: o rio

( Aquarela por Marcos Beccari.
Fonte: https://www.ideafixa.com/oldbutgold/aquarelas-brasileiro-marcos-beccari)
"Os rios, ôh doce amiga, estes rios
Cheios de vistas, povoados de ingazeiras e morretes,
Pelo Capibaribe irás ter no Recife,
Pelo Tietê a São Paulo, no Potenji a Natal.
Pelo Tejo a Lisboa e pelo Sena a Paris...
Os rios, ôh minha doce amiga, na beira dos rios
É a terra de povoação em que as cidades se agacham
E de-noite, que nem feras de pelo brilhante, vão beber..."
(Mário de Andrade. In: Remate de Males. Poesias Completas, Edusp, p.277)
Partindo da fonte, do olho'água que rompe a terra e inicia seu destino de rio, começamos a tecitura desta tapeçaria de referências acerca da simbologia da água.
Bachelard em sua obra A água e os sonhos, nos diz que " A água é realmente o elemento transitório. É a metamorfose ontológica essencial entre o fogo e a terra. O ser votado à água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa de sua substância desmorona constantemente. A morte cotidiana não é a morte exuberante do fogo que perfura o céu em suas flechas; a morte cotidiana é a morte da água"( Martins Fontes, 2002, p.07).
Foi este elemento simbólico com o qual nos deparamos quando trouxemos o tema do rio. Rio como ponte entre vida e morte, como transição entre planos, entre condições de pureza, podridão, ressurreição. São pelos rios do inframundo grego que as almas transitam, pelo Estige, pelo Aqueronte, pelo Lete. Pelo rio subterrâneo Osíris navega sua barca solar, em batalha contra a serpente Apópis. Nas águas doces do rio Oxum oferta beleza, prosperidade e amor.
É muito comum a referência do rio em tradições orais e histórias relacionadas ao trânsito entre vida-morte-renascimento, bem como caminho para o conhecimento através da experiência advinda com o tempo.
Hermann Hesse em Sidarta nos conta, através do balseiro Vasudeva que " O rio sabe tudo e tudo podemos aprender com ele. Olhe, há mais uma coisa que a água já te mostrou: que é bom descer, abaixar-se, procurar as profundezas"(Best bolso,2010, p.90) ao que Sidarta conclue "[...] o rio se encontra ao mesmo tempo em toda a parte, na fonte tanto como na foz, nas cataratas e na balsa, nos estreitos, no mar e na serra, em toda a parte, ao mesmo tempo; de que para ele há apenas o presente, mas nenhuma sombra de passado nem de futuro.[...]. O rio tem muitas vozes, um sem-número de vozes; não te parece que ele tem a voz de um rei e a de um guerreiro, a voz de um touro e a de uma ave noturna, a voz de uma parturiente e a de um homem que suspira, e inúmeras outras ainda?" ( idem, p. 91-92).
Além destas, deixamos outras referências a quem tiver interesse em continuar a viagem rio abaixo:
Mia Couto inicia suas Estórias abensonhadas com o conto Nas águas do tempo, onde acompanhamos avô e neto em silenciosa comunhão com os brancos panos da outra margem, onde amadurecido com a experiência, o neto "acabava de descobrir em mim um rio que não haveria nunca de morrer. A esse rio volto agora a conduzir meu filho, lhe ensinando a vislumbrar os brancos panos da outra margem" ( Cia das letras, 2012,p.14).
Mário de Andrade, integrando sua Lira Paulistana, nos oferta uma linda e dolorida Meditação sobre o Tietê:
Água do meu Tietê
Onde me queres levar?
Rio que entras pela terra
E que me afastas do mar...
(...)
É noite. E tudo é noite. E o meu coração devastado É um rumor de germes insalubres pela noite insone e humana. Meu rio, meu Tietê, onde me levas? Sarcástico rio que contradizes o curso das águas E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens, Onde me queres levar?...
( Disponível na íntegra: http://www.jornaldepoesia.jor.br/and08.html)
De São Paulo à Recife, João Cabral de Melo Neto dá espaço ao rio que se conte, em O Rio ou Relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife:
Sempre pensara em ir caminho do mar. Para os bichos e rios nascer já é caminhar. Eu não sei o que os rios têm de homem do mar; sei que se sente o mesmo e exigente chamar. Eu já nasci descendo a serra que se diz do Jacarará, entre caraibeiras de que só sei por ouvir contar (pois, também como gente, não consigo me lembrar dessas primeiras léguas de meu caminhar).
( Disponível na íntegra: http://www.jornaldepoesia.jor.br/joao05.html)
Sobre rios que se narram e nos deflagram sua condição de morte e renascimento, indicamos a obra Um dia, um Rio com ilustração de André Neves e texto de Leo Cunha, na qual o Rio Doce narra sua triste sina de rio assassinado:
Na margem de cá,
eu tive uma escola,
um caminho.
ouvia os gritos das crianças,
o trote dos cavalos,
o apito do trem.
Na margem de lá, tive uma praça,
uma igreja,
um sino,
uma noiva.
Ouvia o canto das lavadeiras,
as festas de domingo.
Da terceira margem,
eu choro por tudo
e por todos.
( Pulo do Gato, 2016)

Da tradição sufi, nos chega O encontro com as areias: "Vindo desde as suas origens em distantes montanhas, após passar por inúmeros acidentes de terreno nas regiões campestres, um rio finalmente alcançou as areias do deserto. E do mesmo modo como vencera as outras barreiras, o rio tentou atravessar esta de agora, mas se deu conta de que suas águas mal tocavam a areia nela desapareciam".(Disponível na íntegra em http://siddhartha.org.br/discursos/historias-das-tradicoes-sufi/lenda-das-areias/)
Em As fabulosas fábulas de Iauaretê, Kaká Werá Jecupé nos diz do encontro do curumim com o rio: "Do alto daquele jatobá, Iauaretê-mirim olhou e vio o rio de cima.[...]. Ficou olhando, olhando, olhando. Enquanto as águas corriam bem suavemente cantando uma canção ancestral, a imagem mudava de criança para menino e de menino para homem e de homem para velho e de velho para um tom dourado de prata (...)." ( Peirópolis, 2007,p.62.)

São estas apenas alguns exemplos de muitas obras que nos convidam a adentrar o rio e refletir sobre suas águas nossas próprias angústias, medos, inquietações, buscando em sua voz líquida o acalanto, a voz do Tempo.
Deixamos também como referências audiovisuais as obras:
A viagem de Chihiro ( Sen to Chihiro no Kamikakushi. 2001.Dir. Hayao Miyazaki. Trailler:https://www.youtube.com/watch?v=O0QMZ1QZRO4)

A Casa de Pequenos Cubinhos (Tsumiki no ie, 2008. 12 min. Dir. Kunio Katō. Completo em: https://www.youtube.com/watch?v=jUVhV1px6js)
Sonhos (Yume, 1990. Dir. Akira Kurosawa. Trailler: https://www.youtube.com/watch?v=nIA_Gyd2CYw)
CD: Amazônia: Entre Águas e Desertos (Socorro Lira ,2014). Disponível em: https://youtu.be/p8HrdBxO79U
Ser capaz, como um rio que leva sozinho a canoa que se cansa, de servir de caminho para a esperança. E de levar do límpido a mágoa da mancha, como o rio que leva e lava. Crescer para entregar na distância calada um poder de canção, como o rio decifra o segredo do chão. Se tempo é de descer, reter o dom da força sem deixar de seguir. E até mesmo sumir para, subterrâneo, aprender a voltar e cumprir, no seu curso, o ofício de amar. Como um rio, aceitar essas súbitas ondas feitas de águas impuras que afloram a escondida verdade das funduras. Como um rio, que nasce de outros, sabe seguir junto com outros sendo e noutros se prolongando e construir o encontro com as águas grandes do oceano sem fim. Mudar em movimento, mas sem deixar de ser o mesmo ser que muda. Como um rio
( Thiago de Mello, Global,2009, p.221)
